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Filme como um objeto no espaço: um olhar sobre acervos de cinema
26 de junho de 2022

 

“Filme como um objeto no espaço: Um olhar sobre acervos de cinema”

Cinemateca Capitólio

Dias 8 a 17 de julho de 2022

 

Curadoria e produção: Mutual Films

 

Todas as sessões contarão com apresentações dos curadores Aaron Cutler e Mariana Shellard.

 

Resumo:

Nos últimos anos, filmes restaurados passaram a figurar no circuito comercial de cinema, tendo até plataformas de streaming como patronos de projetos de restauração. Ainda que com equipe de especialistas diferentes, a restauração de um filme é tão complexa quanto a produção de um novo filme, e frequentemente resulta em um produto inédito até mesmo para as gerações que testemunharam seu primeiro lançamento. Há filmes que foram silenciados (oficialmente ou não) e sumiram logo após suas estreias, mas cujas restaurações décadas depois trouxeram a eles sua devida visibilidade. Há muitos casos em que a restauração de um filme também restaura um momento histórico, ou o legado de um artista – por exemplo, a recuperação da obra de uma jovem cineasta militante que nos permite observar vividamente os desafios de um país em plena transformação. A mostra “Filme como um objeto no espaço: Um olhar sobre acervos de cinema” apresenta, ao longo de dois fins de semana e dez sessões de cinema na Cinemateca Capitólio, um levantamento de onze projetos recentes de preservação e restauração de filmes de todo o mundo, além de vislumbres dos acervos envolvidos. Hoje, quando assistimos a um filme antigo em uma nova versão, pensamos em como o filme chegou até nós?

 

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Grade de programação da mostra:

 

Sexta-feira, dia 8 de julho:

19h30 – Projeto Raros: O Japão transformado de Toshio Matsumoto (89min)

 

Sábado, dia 9 de julho:

17h – 90 anos de Textor e o acervo da Cinemateca Capitólio (37min, seguido por debate)

19h – Maridos Cegos (100min)

 

Domingo, dia 10 de julho:

17h – Orlando Bomfim, netto e o Acervo Capixaba (90min)

19h – O mundo perdido de Vittorio De Seta (118min)

 

Sexta-feira, dia 15 de julho:

19h30 – As poéticas de Plaat (77min)

 

Sábado, dia 16 de julho:

17h – O Franco + Chircales (87min)

19h – A revolução de Sara Gómez (82min, seguido por debate)

 

Domingo, dia 17 de julho:

17h – Pioneiros do cinema afro-americano (73min)

19h – O Camaleão (94min)

 

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Sinopses dos programas:

 

Dia 8 de julho (sexta-feira), 19h30:

 

“Projeto Raros: O Japão transformado de Toshio Matsumoto” (8 filmes, 89min, todos os filmes preservados pelo Postwar Japan Moving Image Archive / 戦後映像芸術アーカイブ)

 

Toshio Matsumoto (1932-2017) trabalhou como cineasta, teórico de cinema e professor, e hoje é considerado por muitos como o mais importante defensor do cinema experimental japonês. No final de sua vida, em 2014, ele e alguns pesquisadores fundaram uma organização sem fins lucrativos dedicada a preservar e divulgar videoarte e filmes experimentais de seu país. O Postwar Japan Moving Image Archive (https://pjmia.wordpress.com/) é uma organização gerida por voluntários que hoje detém as filmografias de Matsumoto e alguns outros artistas japoneses, juntamente com roteiros, esboços de produção e outros documentos e materiais de pesquisa que foram digitalizados e disponibilizados para acesso público.

 

Matsumoto é conhecido mais por seus longas-metragens O funeral das rosas (1969) e Shura (1971). No entanto, ao longo de décadas ele realizou importantes curtas-metragens, em vários formatos diferentes, que ilustram coletivamente seus esforços para criar um novo gênero de cinema, combinando visões objetivas e subjetivas da realidade que ele chamou em um ensaio famoso de “documentário de vanguarda”. O programa consiste em oito curtas-metragens que a PJMIA remasterizou em 2K (e em alguns casos, restaurou sob a supervisão do próprio Matsumoto) entre 2012 e 2013 a partir dos negativos originais da câmera localizados no Arquivo Nacional de Cinema do Japão (https://www.nfaj.go.jp/english/). Ele apresenta um levantamento dos diferentes gestos cinematográficos de Matsumoto que vão dos documentários poéticos do início da década de 60 às reflexões existenciais sobre a imagem no final da década de 80, passando pela primeira performance com múltiplos projetores no Japão e pelas experiências em vídeo na década de 70.

 

O programa conta com os seguintes filmes (todos dirigidos por Matsumoto e feitos em Japão):

 

Conexão (コネクショ, 1981, 10min, 16 mm para DCP)

A canção das pedras (石の, 1963, 24min, 16 mm para DCP)

Ecstasis (エクスタシス, 1969, 10min, 16 mm para DCP)

Para o olho direito danificado (つぶれかかった右眼のため, 1968, 13min, 16 mm x 3 para DCP)

Mona Lisa (モナリ, 1973, 3min, 16 mm para DCP)

Atman (アートマ, 1975, 11min, 16 mm para DCP)

Engrama (エングラム記憶痕, 1987, 15min, 16 mm para DCP)

Verão 1986 (1986, 1986, 3min, 16 mm para DCP)

 

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Dia 9 de julho (sábado), 17h:

 

“90 anos de Textor e o acervo da Cinemateca Capitólio” (3 filmes, 37min, todos os filmes digitalizados pela Cinemateca Capitólio, sessão seguida por debate)

 

Antônio Carlos Textor fez 90 anos no dia 11 de fevereiro de 2022. O cineasta gaúcho, nascido no munícipio de Soledade em 1932, começou a fazer filmes em 1963 e seguiu nesta direção por mais de cinco décadas. “Eu sou um cara que gosto muito do curta”, Textor falou com afeição em 1997 em uma entrevista no programa televisivo gaúcho Persona Grata (https://www.youtube.com/watch?v=okFCnbp_8OU&t=577s). A frase é adequada para um cineasta que experimentou diferentes estilos em mais de 20 filmes no formato de curta-metragem, muitos deles premiados em festivais ao redor do Brasil.

 

Tanto em documentários, quanto em ficções de natureza mais lírica e experimental, Textor trouxe poesia para o formato do curta-metragem em um esforço de registrar a vida urbana de Porto Alegre, com interesse corolário nas paisagens, as quais também se estenderam para as áreas rurais e para a vida singela das comunidades de imigrantes ao redor do Rio Grande do Sul. “O novo cinema gaúcho começou com Textor”, escreveu o cineasta Jorge Furtado em 2003, na ocasião de uma retrospectiva realizada na Sala P.F. Gastal, celebrando a obra de um pioneiro que rompeu com a tradição gaúcha de narrativas históricas ao registrar para a câmera o mundo atual como ele o viu.

 

O programa na Cinemateca Capitólio conta com os seguintes filmes (todos dirigidos por Antônio Carlos Textor e feitos no Rio Grande do Sul):

 

As colônias italianas no Rio Grande do Sul (1975, 17min, 35 mm para DCP)

Carrossel (1985, 10min, 35 mm para DCP)

Crônica de um rio (1988, 10min, 35 mm para DCP)

 

São três títulos notáveis de Textor, recém-digitalizados em 4K a partir de cópias em 35 mm encontradas no acervo da Capitólio (http://www.capitolio.org.br/), onde foram depositadas pelo diretor (o recente fechamento forçado da Cinemateca Brasileira impossibilitou acesso aos negativos). Os escaneamentos das cópias foram realizados em parceria com a produtora gaúcha Panda Filmes (https://www.pandafilmes.com.br/) dentro do projeto público “Memória Audiovisual”, que também digitalizou cópias de dois outros curtas gaúchos – Vicious (1988, dir. Rogério Brasil Ferrari) e Amigo Lupi (1992, dir. Beto Rodrigues). Um quarto filme de Textor, A Cidade e o Tempo (1970), foi tirado do projeto por não se encontrar em bom estado de conservação. A equipe da Cinemateca Capitólio atualmente visa digitalizar a única cópia existente em 35 mm do longa-metragem Um é Pouco, Dois é Bom (1970), de Odilon Lopez, que se encontra no acervo da instituição.   

 

A sessão dos filmes de Textor será seguida por um debate em torno da obra do cineasta e do trabalho de preservação dos filmes do acervo da Cinemateca Capitólio. O debate contará com representantes da Cinemateca Capitólio (o técnico em cultura Marcus Mello e o programador Leonardo Bomfim Pedrosa) e os curadores da Mutual Films (Aaron Cutler e Mariana Shellard).

 

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Dia 9 de julho (sábado), 19h:

 

Maridos Cegos (Blind Husbands, dir. Erich von Stroheim, E.U.A., 1919, 100min, 35 mm para DCP, filme restaurado e reconstruído pelo Museu de Cinema da Áustria/Österreichische Filmmuseum)

 

O programa consiste na exibição de uma nova versão do primeiro longa-metragem dirigido por Erich von Stroheim (1885-1957) e o único no qual teve controle criativo sobre o corte final. A história deste delicioso melodrama da era silenciosa se baseia em um romance (O Pináculo) escrito pelo cineasta austro-americano, que também atua no filme no papel do vilão galã Tenente von Steuben. Este, sendo um típico mulherengo, tenta seduzir a esposa (Francelia Billington) de um médico (Sam De Grasse) durante a viagem do casal à comuna italiana de Cortina d’Ampezzo para uma escalada a montanhas.

 

Durante anos a versão norte-americana de Maridos Cegos, lançada em 1924, foi a única existente em circulação (pois o negativo original se perdeu). Porém, no início da década de 1980, o Museu de Cinema da Áustria recebeu como doação de uma coleção privada, uma cópia da versão austríaca do filme, lançada originalmente em 1921. Descobriu-se, após análise, que a cópia possuía sete minutos a mais do que a versão amplamente conhecida, com vários planos de duração maior. A restauração digital de 2021 de Maridos Cegos usou como referência principal esta cópia em nitrato, junto a uma cópia em acetato da versão norte-americana que fazia parte do acervo do Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York.

 

Além de ser uma restauração, a nova versão de Maridos Cegos é também uma reconstrução. Os intertítulos em alemão da cópia austríaca foram substituídos pelos intertítulos originais do filme de língua inglesa. E, como ambas as cópias usadas para a restauração eram em preto e branco, o tingimento original do filme foi recriado digitalmente a partir do roteiro de continuidade – guardado no acervo da Universal Studios – que fazia referência à cor, resultando em uma extraordinária sinfonia visual de âmbar, magenta e azul. Uma nova trilha sonora foi encomendada pela ZDF/Arte, composta por Andreas Eduardo Frank e gravada pelo ensemble recherche (Friburgo).

 

O Museu de Cinema da Áustria (https://www.filmmuseum.at/) foi fundado em 1964 por Peter Konlechner e Peter Kubelka. Considerado um dos mais importantes centros de restauração e difusão de cinema da Europa, o Museu manteve por anos uma política rigorosa de restauração analógica (película para película) e de projeção dos filmes em seus formatos originais. Porém, nos últimos anos, o Museu também começou a incorporar preservação e restauração digital em sua prática. Maridos Cegos consta como um de seus projetos de restauração recentes mais notáveis neste sentido, além de ser um filme cujo humor mordaz e crítica à hipocrisia dos homens transmitem uma sensibilidade extremamente contemporânea.

 

A sessão de Maridos Cegos na Cinemateca Capitólio conta com o apoio do Goethe Institut-Porto Alegre.

 

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Dia 10 de julho (domingo), 17h:

 

“Orlando Bomfim, netto e o Acervo Capixaba” (6 filmes, 90min, todos os filmes remasterizados pela Pique-Bandeira Filmes a partir de cópias do Arquivo Nacional e do acervo do cineasta)

 

O documentarista Orlando Bomfim, netto (1941-2021) nasceu em Belo Horizonte, fez seu primeiro filme no Rio de Janeiro em 1969 e, em 1980, se mudou permanentemente para o Espírito Santo – onde já havia realizado alguns trabalhos – e acabou se tornando um dos principais cronistas da vida e cultura capixaba. Os diversos temas de seu cinema incluem a vida cotidiana na região da primeira imigração em massa italiana para o Brasil (Santa Teresa), as manifestações folclóricas de matriz africana no Espírito Santo, os apaixonados estudos de um ambientalista e as mudanças em ecossistemas locais devido à intervenção humana. Seus filmes mostram grande preocupação ecológica e um forte interesse em preservar comunidades, seus rituais e suas práticas através de registros audiovisuais, e adotam uma abordagem íntima de seus personagens que soa ao mesmo tempo lúdica e carinhosa.

 

Em 2016, a produtora e distribuidora audiovisual Pique-Bandeira Filmes (https://www.piquebandeira.com.br/) e o pesquisador Marcos Valério Guimarães começaram a trabalhar em um projeto (aprovado e patrocinado por um edital estatal) de preservação de parte da obra de Bomfim, netto. Foram escolhidos sete curtas-metragens realizados entre 1975 e 1985, sendo seis deles no Espírito Santo e um no Rio de Janeiro (o projeto também visou incluir um oitavo filme, porém não foi possível encontrar uma matriz em bom estado de conservação). Cópias dos filmes em 35 mm e em 16 mm foram emprestadas do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, e do acervo do próprio cineasta, e remasterizadas (e, em alguns casos, parcialmente restauradas) pela produtora carioca Afinal Filmes (http://www.afinalfilmes.com/). Os filmes foram escaneados em 4K, e, após passarem por processos de estabilização de imagem, tratamento de cor e restauração sonora, finalizados em 2K para exibição e preservação.

 

Com isso, a Pique-Bandeira Filmes lançou o selo Acervo Capixaba, dedicado à difusão de importantes obras cinematográficas da história do Espírito Santo. O programa na Cinemateca Capitólio conta com seis filmes de Orlando Bomfim, netto em novas e verdejantes cópias que passarão em Porto Alegre pela primeira vez:

 

Augusto Ruschi Guainunbi (1979, 12min, 35 mm para DCP)

“Tutti tutti buona gente, propriamente buona” (1975, 28min, 16 mm para DCP)

Mestre Pedro de Aurora, pra ficar menos custoso (1978, 11min, 35 mm para DCP)

Canto para a Liberdade – A Festa do Ticumbi (1978, 20min, 35 mm para DCP)

Itaúnas Desastre Ecológico (1979, 9min, 35 mm para DCP)

Dos Reis Magos dos Tupiniquins (1985, 10min, 16 mm para DCP)

 

Em março de 2022, começou a circulação de uma segunda série de filmes do Acervo Capixaba – sete documentários curtos do cineasta Ramon Alvarado (https://www.acervocapixaba.com.br/), cinco dos quais foram digitalizados a partir de material fílmico. Um novo projeto em torno da obra do cineasta capixaba Antonio Carlos Neves está previsto para lançamento em 2023.

 

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Dia 10 de julho (domingo), 19h:

 

“O mundo perdido de Vittorio De Seta” (10 filmes, 118min, todos os filmes restaurados pela Cinemateca de Bolonha/Cineteca di Bologna)

 

O siciliano Vittorio De Seta (1923-2011) veio de uma família aristocrata da Calábria. Ele estudou arquitetura, porém antes de se formar partiu para a Segunda Guerra Mundial, sendo capturado pelos nazistas e levado para um campo de concentração na Áustria. O evento marcou profundamente sua vida, e quando voltou para a Itália, começou a trabalhar com cinema como assistente de direção. Pressentindo o desaparecimento iminente de tradições milenares, ele mergulhou em uma jornada para registrar a vida cotidiana em regiões da Sicília, Sardenha e Calábria.

 

Os 10 curtas-metragens documentais resultantes, realizados entre 1954 e 1959, foram, em sua maioria, fotografados pelo próprio cineasta, sem um roteiro pré-definido e com uma equipe pequena. De Seta foi um dos primeiros cineastas italianos a utilizar som direto, e, sua prática de trabalhar com vistas panorâmicas e imagens coloridas em 35 mm também mostrou um desejo de criar um registro completo e preciso. Sua esposa, Vera Gherarducci, trabalhou como assistente de direção e exerceu um papel crucial na comunicação com os camponeses, principalmente as mulheres, abrindo uma porta de entrada para suas vidas íntimas.

 

Com uma estrutura simples, que em geral descrevia um dia na vida de mineradores, pescadores, agricultores e pastores, do início da manhã até a noite, os filmes mostram práticas que deixaram de existir alguns anos após as filmagens, como a pesca do peixe-espada – uma tradição fenícia de mais de dois mil anos – que cessou em 1956. A Itália passou por uma transformação econômica e tecnológica no início da década de 60 que resultou na migração dos povos do sul para o norte do país, Europa e América do Norte. A mina de enxofre fechou, a rede da pesca do atum deixou de ser utilizada e o trigo deixou de ser batido manualmente.

 

Quando foram lançados, os filmes passavam individualmente em escolas e antes de exibições de longas-metragens (uma prática então comum na Itália). Mas, com suas restaurações analógicas na década de 90 pela Cinemateca de Bolonha (https://cinetecadibologna.it/), foram relançados como uma série que De Seta chamou de “O mundo perdido”. Eles foram restaurados em 4K pela Cinemateca de Bolonha em 2019, a partir dos materiais depositados na instituição pelo cineasta, que incluíram todos os negativos originais de som e negativos em 35 mm de imagem de oito dos filmes. Estas novas restaurações vão passar na Cinemateca Capitólio:

 

A temporada do peixe-espada (Lu tempu di li pisci spata, 1954, 11min, 35 mm para DCP)

Ilhas de fogo (Isole di fuoco, 1954, 11min, 35 mm para DCP)

Minas de enxofre (Surfarara, 1955, 11min, 35 mm para DCP)

Páscoa na Sicília (Pasqua in Sicilia, 1955, 10min, 35 mm para DCP)

Camponeses do mar (Contadini del mare, 1955, 11min, 35 mm para DCP)

Parábola do ouro (Parabola d’oro, 1955, 10min, 35 mm para DCP)

Barcos pesqueiros (Pescherecci, 1958, 11min, 35 mm para DCP)

Pastores de Orgosolo (Pastori di Orgosolo, 1958, 11min, 35 mm para DCP)

Um dia na Barbagia (Un giorno in Barbagia, 1958, 11min, 35 mm para DCP)

Os esquecidos (I dimenticati, 1959, 21min, 35 mm para DCP)

 

A sessão dos filmes de Vittorio De Seta é realizada pelo Consolato Generale d’Italia a Porto Alegre (Consulado Geral da Itália em Porto Alegre).

 

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Dia 15 de julho (sexta-feira), 19h30:

 

“As poéticas de Plaat” (7 filmes, 77min, todos os filmes restaurados pelo Eye Filmmuseum)

 

O pintor, fotógrafo e cineasta Henri Plaat nasceu em 1936 em Amsterdã e filmou em diversos países (inclusive na América do Sul) ao longo de sua vida. Ele realizou em torno de 50 filmes, de durações variadas, frequentemente utilizando filme reverso em 16 mm como material bruto, até desistir de fazer cinema em 2009, quando sua marca preferida de película (Kodachrome) parou de ser produzida no mercado. Os filmes trabalham a paisagem e elementos culturais icônicos de forma lúdica e melancólica, nos territórios do onírico e do surreal. Não há diálogos, há trilhas sonoras variadas. Muitas das obras são brilhantemente coloridas e camp ao retratar protagonistas que desejam se transformar em modelos e astros de cinema. Certa vez, Plaat falou (em uma entrevista publicada em 2004) que “Meus filmes se rebelam contra a realidade”. Eles invocam ao mesmo tempo beleza, humor ácido e degradação material.

 

Em 2000, como parte de um projeto de aquisição e preservação de cerca de 1.500 filmes do cinema experimental holandês dos anos de 1960 em diante, o Eye Filmmuseum (https://www.eyefilm.nl/en), em Amsterdã, começou a trabalhar com a preservação do cinema de Plaat, que doou seu acervo para a instituição. Há muito tempo, o Eye é um líder mundial em esforços de preservação de cinema, tanto através de conferências e cursos acadêmicos sobre o tema, quanto na preservação de obras específicas nacionais e estrangeiras (inclusive, com grande atenção para o cinema da era silenciosa). Neste projeto em particular, as obras de alguns artistas experimentais holandeses se destacaram, entre elas, as de Plaat – por seu grande valor artístico, e também, devido às especificidades técnicas das películas.

 

A maioria dos filmes de Plaat existiam em cópias únicas, sem negativos (por terem sido filmados em estoque reverso). O Eye inicialmente criou internegativos como cópias de preservação, porém foi um desafio gerar reproduções analógicas de películas Kodachrome devido à intensa saturação das cores. Recentemente, com a tecnologia digital, foi possível alcançar um resultado mais próximo das cores originais. Dez filmes de Plaat foram então restaurados em 2K com a aprovação do cineasta (entre eles, alguns que, por questões de direitos autorais, não tinham sidos preservados anteriormente), e em 2020, o Museu os disponibilizou como dois programas sob o nome de “As poéticas de Plaat”.

 

O programa na Cinemateca Capitólio conta com sete dos 10 filmes (todos dirigidos por Henri Plaat e de produção holandesa), selecionados dos dois programas organizados pelo Eye:

 

Absürd (1973, 2min, 16 mm para DCP)

Esporas do Tango (Spurs of Tango, 1980, 32min, 16 mm para DCP)

Fragmentos da Decadência (Fragments of Decay, 1983, 12min, 16 mm para DCP)

Chapéus da Segunda Guerra (Second War Hats, 1986, 4min, 16 mm para DCP)

Moda de Nova York (Fashion from New York, 1980, 8min, 16 mm para DCP)

A Estrela Estranha, porém Desconhecida (The Strange but Unknown Star, 1969, 8min, 16 mm para DCP)

El Niño Perverso Y El Tío (1981, 11min, 16 mm para DCP)

 

A sessão dos filmes de Henri Plaat conta com o apoio do Consulado Geral do Reino dos Países Baixos em São Paulo.

 

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Dia 16 de julho (sábado), 17h:

 

O Franco + Chircales” (2 filmes, 87min)

 

O Franco (Le Franc, dir. Djibril Diop Mambéty, Senegal/Suíça/França, 1994, 45min, 35 mm para DCP, filme restaurado pela Waka Films em parceria com o Laboratoire Éclair e a Cinémathèque Afrique, do Institut Français)

 

O Franco foi o último filme completado em vida pelo grande cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty (1945-1998), conhecido melhor por Touki Bouki, a Viagem da Hiena (1973). Ele foi concebido como a primeira parte de uma trilogia inacabada de médias-metragens chamada “Histórias de gente pequena”, sobre as desventuras da vida cotidiana de senegaleses que vivem às margens da sociedade. Esta comovente comédia segue os percursos de Marigo (interpretado por Dieye Ma Dieye), um músico e residente de uma favela em Dacar que perde seu instrumento, o congoma (uma espécie de guitarra), por falta de pagamento do aluguel de seu quarto. A salvação potencialmente chega quando Marigo compra um bilhete de loteria vencedor, mas ele tem de entender o que fazer após grudá-lo com demasiada força atrás de sua porta. Ele corre pela cidade para tentar trocar o bilhete, em cenas que misturam surrealismo com realismo social. O filme foi inspirado na súbita desvalorização do Franco CFA da África Ocidental em 1994, e a ação transpassa sob a sombra de Yaadikoone Ndiaye, um bandido e herói nacional cuja imagem em um cartaz na casa de Marigo questiona a dependência dos senegaleses ao capitalismo.

 

Os negativos de O Franco e o segundo filme da trilogia, A Pequena Vendedora de Sol (1999), ficaram com Silvia Voser e Waka Films (http://www.wakafilms.net/), a produtora suíça da série. Enquanto A Pequena Vendedora circulava em cópias em estado razoável, por anos foi difícil de assistir uma versão de O Franco que fizesse justiça a seus brilhantes tons e texturas de vermelhos, amarelos e azuis. Isso mudou com a restauração dos dois filmes em 2K em 2018, um processo realizado pela Waka Films através do laboratório francês Éclair (cuja ala de restauração é hoje conhecida como L’Image Retrouvée: http://www.imageretrouvee.fr/) .

 

Logo, os filmes se integraram em um projeto de distribuição da Cinémathèque Afrique, um braço do Institut Français, junto ao órgão francês CNC (Centro Nacional de Cinematografia). O projeto, chamado “20 filmes para 2020” (https://ifcinema.institutfrancais.com/fr/cycle?id=fc6b82b9-b9e0-42a3-bc39-534e77c8c7a0), coloca clássicos restaurados do cinema africano (a maioria deles curtas e medias-metragens) em circulação não comercial em diversos países. A conclusão do projeto foi adiada por causa da pandemia, e ele atualmente conta com 16 filmes, que foram escolhidos em 2018 pelo Committee for African Cinematographic Heritage (CPCA), um comité de 14 especialistas em cinema africano cujas deliberações contemplaram títulos de 20 países. O projeto não guarda elementos originais dos filmes escolhidos, mas colabora com cinematecas e detentores.

 

A exibição de O Franco conta com o apoio do Institut Français e da Cinemateca da Embaixada da França no Brasil.

 

O Franco será seguido pelo filme:

 

Chircales (dir. Marta Rodríguez e Jorge Silva, Colômbia, 1966-71, 42min, 16 mm para DCP, filme restaurado pelo Arsenal – Institut für film und videokunst e.V. em parceria com a Fundación Cine Documental)

 

Em 1971, a antropóloga Marta Rodríguez (nascida em 1933) e o fotógrafo Jorge Silva (1941-1987) – ambos artistas colombianos dedicados ao cinema de documentário como instrumento de ativismo social – criaram a Fundación Cine Documental para registrar e denunciar os abusos de uma elite colombiana que explorava camponeses e dizimou povos indígenas. Eles colaboraram por mais de vinte anos, até a morte prematura de Silva em 1987, e realizaram sete filmes, de durações variadas, a partir de longos e rigorosos processos de pesquisa no campo e vivências entre as comunidades retratadas. Rodríguez continuou o trabalho em parcerias diversas, entre elas, com seu filho Lucas Silva, Fernando Restrepo, Felipe Colmenares e com associações de tribos indígenas como a ACIN e Çxhab Sala Kiwe, e registrou a violência do conflito armado entre paramilitares, guerrilheiros e traficantes de drogas que resultou no desalojamento de famílias de camponeses indígenas e afrodescendentes. Ela segue fazendo cinema até hoje.

 

A Fundación Cine Documental (https://martarodriguez.com.co/), que atualmente é cuidada pelos filhos e colaboradores do casal Rodríguez e Silva, também se dedicou à preservação de um inestimável arquivo de imagens fotográficas e cinematográficas da história da Colômbia desde os anos 40. Como parte deste esforço, criou parcerias para restaurar os filmes da família com instituições internacionais como o Arsenal – Institut für Film und Videokunst e.V. (Chircales e Nuestra Voz de tierra, memoria y futuro), o Festival Internacional de Curtas-Metragens de Oberhausen (Campesinos), e os laboratórios mexicanos Labofilms e Celuloide (Planas, testimonio de un etnocidio).

 

O primeiro projeto de restauração (concluído em 2014) foi do primeiro filme de Rodríguez e Silva, o media-metragem Chircales, que eles realizaram entre os anos 1966 e 1971. A restauração foi realizada como uma parceria entre a Fundación, o Arsenal e a Direção de Cinematografia do Ministério da Cultura da Colômbia. O material fílmico (dois negativos em 16 mm duplicados e um negativo de som óptico), que se encontrava em bom estado de preservação, foi enviado à equipe do Arsenal (https://www.arsenal-berlin.de/) pela Fundación. Rodríguez acompanhou o processo de restauração e digitalização do material em 2K, e um novo negativo em 35 mm também foi gerado para fins de preservação.

 

“Chircales” era o nome dado às propriedades de produção artesanal de tijolos existentes nas periferias de Bogotá. Nelas, havia um sistema de trabalho degradante onde o trabalhador, residente no próprio local de fabricação, era submetido a intensas horas de trabalho mal remunerado e vivia à mercê de arrendatários das terras, as quais pertenciam a membros de uma elite negligente. O filme acompanha o sombrio dia a dia da família Castañeda. O patriarca alcoólatra é debilitado por doenças pulmonares comuns ao ambiente da produção de tijolos, e a matriarca que, além de trabalhar na produção, precisa criar os 12 filhos, que variam entre jovens crianças e jovens adultos, todos destinados ao mesmo modo de vida. Apesar da dura jornada, há espaço para a fé religiosa, que funciona como uma fuga ocasional. O filme mostra a situação de seus personagens de forma impressionista, com extraordinária fotografia em preto e branco e longos períodos de silêncio entre os momentos de narração.

 

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Dia 16 de julho (sábado), 19h:

 

“A revolução de Sara Gómez” (4 filmes, 82min, sessão seguida por debate)

 

Sara Gómez nasceu na cidade de Guanabacoa, em Cuba, em 1942, parte de uma família da elite cultural afro-cubana. Ela tinha 16 anos quando Fidel Castro assumiu o poder. Em 1961, ela entrou para o ICAIC – o Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematográficas, a primeira entidade cultural estabelecida no país após a Revolução Cubana –, sendo a única mulher negra da equipe. Em pouco mais de uma década, “Sarita” dirigiu 19 curtas e médias-metragens de natureza documental, muitos deles exibidos exclusivamente ou quase exclusivamente nas premissas do próprio ICAIC. Ela experimentou diferentes linguagens cinematográficas para tratar da nova sociedade, explorando temas abrangentes como as heranças da cidade de Santiago de Cuba, as estruturas dos campos de reeducação para adolescentes na Ilha da Juventude e a condição atual da mulher cubana.

 

Os anos formativos de Gómez enquanto artista coincidiram com os anos formativos da Revolução. Isso se reflete através de um estilo cinematográfico em fluxo constante, cujas abordagens variam de passagens musicais e poéticas a entrevistas didáticas. E, também, através de um posicionamento às vezes mais crente e fiel aos ideais da Revolução, e às vezes, mais cético e crítico frente às expectativas para a “Nova Mulher” (e, junto a ela, o “Novo Homem”), que deve direcionar todo seu trabalho para o bem da sociedade. Os filmes de Gómez apontam as contradições de uma sociedade que visa criar modelos, sem conseguir, no entanto, superar valores antiquados.

 

A diretora estava finalizando seu primeiro longa-metragem de ficção quando morreu subitamente de um ataque de asma. Nas décadas subsequentes, ela se tornou uma figura de fascinação para muitos pesquisadores, que infelizmente tinham de recorrer a cópias deterioradas de seus filmes. Isso mudou nos últimos anos, primeiro, com uma restauração digital do longa-metragem, De certa maneira (1974-77), realizada pelo Arsenal – Institut für film und Videokunst e.V., em Berlim. Atualmente, há um processo em andamento da restauração dos documentários de Gómez pelo Vulnerable Media Lab (https://vulnerablemedialab.ca/), um projeto situado no campus da Queen’s University, no Canadá, cujo trabalho é direcionado para a recuperação de obras audiovisuais realizadas por mulheres e por cineastas indígenas (incluindo o acervo do Vídeo nas Aldeias). Os dois processos contaram com o envolvimento próximo do ICAIC (https://twitter.com/cubacineicaic), que frequentemente busca parcerias com instituições estrangeiras para a restauração de filmes de seu acervo.

 

O programa na Cinemateca Capitólio conta com os quatro curtas e médias-metragens de Sara Gómez (todos feitos em Cuba) que foram restaurados até o momento. Três dos filmes foram restaurados pelo Vulnerable Media Lab, em parceria com o ICAIC, entre 2021 e 2022. O quarto, Uma ilha para Miguel, foi restaurado pela Cinemateca de Bolonha, em parceria com estas duas instituições, em 2021:

 

Irei a Santiago (Iré a Santiago, 1964, 15min, 35 mm para DCP)

Guanabacoa: Crônica de minha família (Guanabacoa: Crónica de mi família, 1966, 13min, 35 mm para DCP)

Uma ilha para Miguel (Una isla para Miguel, 1968, 21min, 35 mm para DCP)

Minha contribuição (Mi aporte, 1969, 33min, 16 mm para DCP)

 

A sessão será seguida por um debate sobre a obra de Gómez. O debate contará com a participação de Juliana Costa – crítica, professora e fundadora do Cineclube Academia das Musas – e dos curadores da Mutual Films (Aaron Cutler e Mariana Shellard).

 

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Dia 17 de julho (domingo), 17h:

 

“Pioneiros do cinema afro-americano” (2 filmes, 73min)

 

O programa conta com os seguintes filmes:

 

Igreja do Guardião do Testamento, Beaufort, Carolina do Sul, maio 1940 (Commandment Keeper Church, Beaufort South Carolina, May 1940, dir. Zora Neale Hurston, E.U.A., 1940, 16min, 16 mm para DCP, material preservado pela Biblioteca de Congresso/Library of Congress e editado e remasterizado pela Kino Lorber)

O sangue de Jesus (The Blood of Jesus, dir. Spencer Williams, E.U.A., 1941, 57min, 35 mm para DCP, filme remasterizado pela Kino Lorber a partir de uma cópia preservada pela Southern Methodist University)

 

Em 1983 o pesquisador e professor norte-americano William G. Jones adquiriu para o Departamento de Filme e Vídeo da biblioteca da Southern Methodist University, em Dallas, uma série de filmes descobertos em um galpão em Tyler, Texas. Eram produções de realizadores negros feitas entre 1935 e 1956, durante o período da segregação norte-americana que levou inúmeros artistas e empreendedores negros a criarem uma indústria paralela de entretenimento voltada para a comunidade negra. A chamada “Tyler, Texas Black Film Collection” (“Coleção de Cinema Negro de Tyler, Texas”) tornou-se emblemática por reintroduzir ao público a primeira série de obras do gênero denominado “filmes de raça”, consideradas perdidas havia décadas. A coleção ajudou a lançar luz sobre uma indústria que emergiu da segregação nos Estados Unidos e declinou com integração racial nos anos 60.

 

Em 1991, pela primeira vez, um “filme de raça” foi selecionado para preservação pela Biblioteca do Congresso (https://loc.gov/) – a mais antiga instituição federal nos Estados Unidos, e um dos maiores centros do mundo para conservação de filmes em película. Ele foi um dos filmes encontrados em Tyler, O sangue de Jesus, dirigido por Spencer Williams. Um quarto de século depois, em 2015, a distribuidora norte-americana Kino Lorber (https://www.kinolorber.com/) lançou a coleção “Pioneiros do cinema afro-americano” (“Pioneers of African-American Cinema”), que utilizou diversos materiais encontrados na Biblioteca do Congresso e na Southern Methodist University. Os professores universitários e curadores Charles Musser e Jacqueline Stewart escolheram 16 longas-metragens, 11 curtas e alguns fragmentos de filmes que a distribuidora digitalizou e, em alguns casos, restaurou parcialmente, conseguindo ampliar suas ambições iniciais com a ajuda de uma campanha de financiamento coletivo.

 

O programa na Cinemateca Capitólio conta com dois dos filmes da coleção, ambos feitos no Sul dos Estados Unidos no mesmo momento histórico (o início da década de 1940) e mostrando comunidades religiosas afro-americanas, que frequentemente formavam grande parte da audiência norte-americana negra. O primeiro é Igreja do Guardião do Testamento, Beaufort, Carolina do Sul, maio 1940, um registro documental de 16 minutos que a equipe da Kino Lorber remasterizou e editou a partir de um conjunto de 42 minutos de material bruto captado pela renomada romancista e antropóloga Zora Neale Hurston (1891-1960), selecionado para preservação pela Biblioteca do Congresso em 2005. E o segundo é o longa-metragem de ficção de estreia de Spencer Williams (1893-1969), O sangue de Jesus.

 

Hurston escreveu célebres livros com um olhar ao mesmo tempo íntimo e sociológico que relataram as vidas de mulheres negras, como Seus olhos viam Deus (1937), hoje considerado um dos romances mais importantes da literatura norte-americana. Mas, apesar disso, morreu praticamente esquecida, e foi apenas a partir do final do século XX que sua obra foi devidamente valorizada. A Biblioteca do Congresso guarda diversos materiais de Hurston, entre eles, peças inéditas de teatro e filmagens de campo. Hurston estudou antropologia com o Franz Boas na Universidade Columbia, em Nova York, e durante este período viajou para o Sul dos Estados Unidos para pesquisar e registrar (com uma câmera e gravador 16 mm) a vida das comunidades negras rurais da região.

 

O material do Igreja do Guardião mostra rituais cristãos do povo Gullah em uma comunidade costal em uma das mais antigas cidades da Carolina do Sul. Dentro e fora da igreja, mulheres tocam violão, um pregador grita para louvar o Senhor e pessoas entram estados de êxtase espiritual. Embora o som das cerimonias tenha sido gravado a parte por um colaborador de Hurston (Norman Chalfin) sem sincronia com as imagens, o montador na Kino Lorber (Bret Wood) conseguiu combiná-los para passar uma impressão de um momento vibrante e suspenso no tempo.

 

A Kino Lorber escaneou O sangue de Jesus em HD a partir da cópia em 35 mm encontrada na Southern Methodist University (https://www.smu.edu/libraries/digitalcollections/ttb) – pelo que se sabe, a única cópia em 35 mm do filme que atualmente existe no mundo. Spencer Williams foi conhecido em vida por seu trabalho como um ator cômico de cinema e televisão. Ele também dirigiu nove longas-metragens (sete dos quais sobrevivem) de baixíssimo orçamento, todos realizados na década de 1940 e com temáticas que transitam entre o sagrado e o profano. O sangue de Jesus conta a história de uma jovem batista, em uma cidadezinha no Texas, chamada Martha Ann Jackson (interpretada por Cathryn Caviness) que enfrenta a tentação do Diabo após ser acidentalmente baleada por seu marido (o próprio Williams). Enquanto a comunidade reza por ela em seu leito de morte, Martha vive em um estado de transe, em um outro mundo onde deverá fazer uma escolha vital.

 

Na época de seu lançamento, O sangue de Jesus foi um dos filmes mais populares até então realizados para seu público. Ele triunfou tanto nas salas comerciais, quanto nas igrejas, que formavam um circuito alternativo de cinema. O filme conta com uma forte presença de hinos tradicionais e spirituals, cantados por seu elenco majoritariamente de atores não profissionais, entre esses, o Reverendo R.L. Robinson e seu Heavenly Choir (Coro Divino). A viagem entre o mundo terrestre e o além é transmitida com frescor não apenas pelas imagens, mas ainda mais, pelas vozes destas pessoas.

 

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Dia 17 (domingo), 19h:

 

O Camaleão (Chameleon Street, dir. Wendell B. Harris, Jr., E.U.A., 1990, 94min, 35 mm para DCP, filme restaurado pela Arbelos Films sob a supervisão do cineasta)

 

Em um debate com o crítico Elvis Mitchell, em 1990, Wendell B. Harris, Jr. se deu conta de que seu filme havia sido silenciado. O diretor, produtor, ator, montador e roteirista norte-americano (nascido em 1954 em Flint, Michigan) conversava sobre seu longa-metragem de estreia, O Camaleão, que ganhou o prêmio principal do Festival de Sundance em 1990 e foi celebrado por figuras como Steven Soderbergh como uma obra crucial do novo cinema independente norte-americano. Porém, meses depois, não havia nenhum sinal de um contrato de distribuição do filme. A única proposta que Harris recebeu, e aceitou, veio da Warner Brothers, para os direitos de refilmagem de O Camaleão, porém, posteriormente, ficou evidente para o cineasta que o estúdio não tinha intenção de seguir com o projeto, e nem de distribuir o original.

 

O Camaleão é uma comédia ácida que conta a história real de William Douglas Street, Jr. (interpretado no filme pelo próprio Harris, um ator de formação clássica), que personificou profissionais de sucesso – como um repórter da revista Time, um cirurgião residente formado em Harvard e um advogado –, sem possuir qualquer experiência formal. Doug Street personificou o sonho consumista americano, do qual homens negros como ele eram excluídos. Para Harris, este foi o aspecto mais fascinante da história, além da própria genialidade do vigarista que executou mais de trinta histerectomias bem-sucedidas e causou tamanha impressão como advogado que levou seus superiores a declararem que as portas do escritório estariam abertas caso ele se endireitasse.

 

Harris entrevistou Street – que, na época, vivia em uma cela de prisão – ao longo de dois anos e registrou detalhadamente suas histórias e seu raciocínio sagaz para recontar sua ascensão e queda. O filme resultante conta com várias referências do cinema de arte europeu, como filmes de Jean Cocteau e Jean-Luc Godard, que ajudam a apresentar o protagonista como um alienígena no seu contexto norte-americano.

 

O Camaleão circulou por anos em lançamentos pequenos, enquanto Harris e sua produtora (Prismatic Images, Inc.) mantiveram os materiais originais do filme em bom estado de preservação. Ele foi escaneado em 4K e restaurado digitalmente a partir dos negativos originais em 2021, um processo assumido pela Arbelos Films (http://arbelosfilms.com/) ­– uma distribuidora e selo de restauração especializada em filmes independentes (como O funeral das rosas, de Toshio Matsumoto) que busca ampliar o cânone do cinema. O trabalho aconteceu entre Los Angeles e Flint em plena pandemia. Enquanto o time da Arbelos enviava trechos da restauração para Harris, ele enviava seu feedback detalhado. Diferentemente de muitos casos de restauração envolvendo o cineasta autor, o trabalho com o filme foi de pouca intervenção, mantendo a maior fidelidade possível à versão original. Harris continua desenvolvendo projetos, O Camaleão segue sendo seu único longa-metragem até o momento.

 

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Agradecimentos da mostra: Ana Isabel Rodríguez Fernández e Luciano Castillo Rodríguez/ICAIC, Ashley Clark/Criterion Collection, Bret Wood/Kino Lorber, Carmen Accaputo/Cineteca di Bologna, Coralie George/Cinémathèque Afrique, David Marriott e Ei Toshinari/Arbelos Films, Edith van der Heijde e Mark Paul Meyer/Eye Filmmuseum, Felipe Colmenares e Lucas Silva/Fundación Cine Documental, Gina Loria, Guilherme Delamuta/Onda Finalização, Hirofumi Sakamoto/Postwar Japan Moving Image Archive, Joshua Yumibe/Turconi Project, Juliana Costa/Cineclube Academia das Musas, Jurij Meden e a equipe do Österreichische Filmmuseum, Luís Felipe Flores/Cinecipó – Festival do Filme Insurgente, Marcus Mello e Leonardo Bomfim Pedrosa/Cinemateca Capitólio, Maria Cardozo/FINCAR – Festival Internacional de Cinema de Realizadoras, Markus Ruff/Arsenal – Institut für film und Videokunst e.V., Mike Mashon/Library of Congress, Lauren Lean e Nancy Kauffmann/George Eastman Museum, Nathalie Tric e Thomas Sparfel/Embaixada da França no Brasil, Paulo Ricardo Gonçalves de Almeida/Voa-Comunicação e Cultura LTDA., Sara Marques/Doclisboa, Silvia Voser/Waka Films, Susan Lord e Reşat Fuat Çam/Vulnerable Media Lab, Vitor Graize/Pique-Bandeira Filmes, William Plotnick/Cinelimite

 

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