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Filme como um objeto no tempo
7 de julho de 2022

“Filme como um objeto no espaço: Um olhar sobre acervos de cinema”

Cinemateca Capitólio

Dias 8 a 17 de julho de 2022

 

Curadoria e produção: Mutual Films

 

Filme como um objeto no tempo
Fermentação fílmica, Parte 1

O texto a seguir é publicado em conjunto com a mostra “Filme como um objeto no espaço: Um olhar sobre acervos de cinema”, que segue em cartaz até dia 17 de julho na Cinemateca Capitólio. Ele foi originalmente publicado em inglês em 2021 no livro Scratches and Glitches: Observations on Preserving and Exhibiting Cinema in the Early 21st Century, escrito por Jurij Meden, um esloveno curador de cinema que trabalhou com preservação de filmes experimentais da ex-Iugoslavia e atualmente exerce o papel de curador e diretor de programação de cinema no Museu de Cinema da Áustria. O livro é uma coleção de breves ensaios sobre questões que o cinema enfrenta hoje em dia. Este capítulo aparece aqui em tradução para português com o consentimento do autor.

Antes da invenção de métodos mais complexos – e consequentemente mais frágeis e provisórios- de preservação de alimentos, como a pasteurização e refrigeração, a fermentação era o único método de conservação da matéria orgânica morta por semanas, meses, anos, décadas, até mesmo por séculos, para que ela continuasse útil, ou seja: comestível.

Evidências arqueológicas testemunham que seres humanos têm deliberadamente fermentado seus alimentos desde a era Neolítica, por volta de 8.500 anos atrás. Fora a preservação, o processo metabólico da fermentação – ativado e mantido por microrganismos anaeróbicos “amigáveis” – muda a textura e o gosto da comida, eventualmente tornando-a objetivamente mais digestível e nutritiva, e subjetivamente mais saborosa.

Algumas teorias recentes sugerem que o animal humano não estava sozinho em acidentalmente descobrir a fermentação e depois tornar esta tecnologia parte essencial de sua marca cultural. Cachorros e esquilos, por exemplo, enterram carne e nozes tanto para fazer um estoque para períodos escassos, como para fazer deste estoque enterrado algo mais saboroso, nutritivo e resistente frente ao indesejável apodrecimento aeróbico.

O que esta lição histórica nos ensina é extremamente simples. O filme analógico é matéria orgânica morta. O intervalo de tempo da matéria orgânica morta é limitado. Pode ser estendido naturalmente apenas através da transformação, assim como a evolução nada mais é do que a preservação de matéria orgânica viva através de transformações constantes.

A transformação, portanto, parece ser uma palavra operativa em relação à preservação, e ainda assim permanece sendo o temido inimigo de uma cultura da preservação e restauração de cinema que prefere vestir corpos em decomposição com camadas grossas de maquiagem digital artificial para restaurar uma aparência original mítica.

No lado oposto desta abordagem da preservação de cinema, abraçando inteiramente o conceito e consequências da transformação – propositalmente, e não por necessidade ou negligência – pode levar a resultados memoráveis.

Em 1983, o iugoslavo, cineasta experimental, cinegrafista e produtor cultural Miodrag “Miša” Miloševic dirigiu um curta-metragem chamado Poslednji tango u Parizu (Último Tango em Paris). O que ele fez foi simplesmente tomar um desvio, um gesto local popular para cineastas que quisessem trabalhar com found footage, mas não tinham acesso ao material.

Miloševic usou sua câmera 8 mm e película ORWO colorida para filmar fragmentos de uma transmissão televisiva colorida do filme de Bernardo Bertolucci, Último Tango em Paris (1972). Sua televisão naquele tempo era um produto lendário local da empresa El(ektro) Niš – que, incidentalmente, foi uma das últimas a fabricar televisores de tubo de raios catódicos.

A fonte de transmissão era a Radio Televisão de Belgrado (RTB), uma transmissora pública que adquiriu os direitos locais de TV para passar Último Tango em Paris após o lançamento iugoslavo do filme em salas de cinema em 1976. Miloševic trabalhou com cinco ou seis rolos de filme, filmando a 18 quadros por segundo. Ele editou na própria câmera, obtendo uma imagem extremamente granulada para os 20 minutos de extração/apropriação/remix da notória magnum opus de Bertolucci.

Com a ajuda de uma impressora óptica caseira, Miloševic ampliou seu original em 8mm para uma versão em estoque de filme reverso Kodak 16mm preto e branco vencido que ele resgatou de um contêiner de lixo em Velika Plana. Alguns anos antes, a RTB adquiriu uma grande quantidade de filmes baratos 16 mm preto e branco usados para cobrir a Terceira Guerra Árabe-Israelense, mas a guerra acabou em seis dias, resultando em um excedente de película para venda.

Assim, Miloševic produziu uma única cópia em 16 mm para projeção. Ao longo da década seguinte, Poslednji tango u Parizu foi amplamente mostrado em vários espaços culturais independentes e em festivais de cinema em toda a Iugoslávia e no exterior, enquanto o material original e intermediário que levou ao filme desapareceu.

Depositado nas prateleiras do mau cuidado Arquivo de Cinema Alternativo de Belgrado, e tendo passado de raspão por um bombardeio da OTAN no final dos anos 90 – ataques aéreos que não pouparam outros arquivos audiovisuais ao seu redor -, em algum momento a cópia em 16 mm foi telecinada e suas imagens desgastadas e cansadas foram transferidas para Betacam.

Em outro momento entre o passado e o presente, a cópia em 16mm foi considerada frágil demais para continuar sendo usada. Antes que a cópia Betacam tivesse um destino similar, ela foi digitalizada. E então, quase quarenta anos mais tarde, um arquivo mp4 de 1.53GB é tudo que resta de Poslednji tango u Parizu. Como um efeito colateral inevitável deste processo de filmagem da tela de TV, ampliação, múltiplas projeções, condições de armazenamento inadequadas, telecinagem e digitalização, a obra de Miloševic foi enriquecida por uma série de novos elementos: grãos, riscos, cortes, perda de contraste, foco suave, reenquadramento, pixelização, glitches, bordas irregulares de entrelaçamento de vídeo, e, finalmente, uma camada irregular de uma coloração amarela.

Hoje, Miloševic está aposentado e sobretudo preocupado com a fermentação de suas ameixas caseiras. Mas ele endossa com alegria o processo de mutação visual descrito acima e está encantado com a nova cara de seu filme, uma vez que o processo “natural” de sua “fermentação fílmica”, em essência, serviu apenas para realçar sua intenção artística inicial de reenquadramento, re-mixagem e re-imaginação do sonho febril de Bertolucci. De fato, Poslednji tango u Parizu nunca pareceu melhor. E nem mesmo Último Tango em Paris.

 

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